A condenação à prisão do humorista Leo Lins por fazer piadas preconceituosas levantou uma série de debates acerca dos limites do humor e do direito à liberdade de expressão. Em seu show de stand-comedy “Perturbador”, lançado em 2022 e publicado em seu perfil no YouTube, o humorista fez uma série de piadas ofensivas de cunho pedófilo e contra negros, homossexuais, pessoas com HIV e com deficiência, nordestinos, obesos, indígenas e evangélicos.
Ele usou frases como “Sou totalmente contra a pedofilia, sou mais a favor do incesto, se for abusar de uma criança, abusa do seu filho, ele vai fazer o quê? Contar para o pai?”; “Tem ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%” e “Coisa terrível é usar o negro como escravo, graças a Deus isso acabou e agora usam os bolivianos”.
O caso dividiu opiniões entre público e classe artística. De um lado, houve quem se posicionasse contra a sentença, alegando que o parecer fere o direito à liberdade de expressão e censura o livre pensamento. De outro, algumas pessoas entenderam que a decisão é positiva, pois serve para punir aqueles que fazem do humor um ambiente disponível para propagar o ódio contra as minorias.
Mas, afinal, até que ponto a Justiça pode interferir neste âmbito? E quais reflexões público e classe artística podem fazer a partir deste caso? Pós‑doutor em Educação pela Unicamp e autor do livro “Você Conhece Aquela? A Piada, o Riso e o Racismo À Brasileira” (Selo Negro Edições), o professor de antropologia Dagoberto José Fonseca avalia que este é um caso de “punição exemplar.”
“É algo necessário e urgente diante de situações semelhantes que deveriam receber a mesma pena. Trata-se de uma situação em que a piada ultraa os limites do aceitável e se configura como crime, atingindo diretamente populações historicamente discriminadas e desprotegidas pelo Estado. Estamos diante de um influenciador, alguém com grande alcance na opinião pública, que usou sua visibilidade para destilar ódio. Não é um episódio isolado, mas sim um conjunto de ações: ridicularização, racismo direcionado a pessoas negras e até crime de pedofilia. Diante desse cenário, é fundamental que esse tipo de conduta seja enquadrada com o devido rigor da lei. Não se trata de ‘politicamente correto’ ou de ‘limitar a liberdade de expressão’, e sim de Justiça, de responsabilidade e de proteção de direitos fundamentais”, reflete.
Em seu livro, o professor avalia que piadas como as feitas por Leo Lins não são inocentes nem inventadas para serem “apenas um atempo lúdico que alimenta aparente e despreocupadamente um diálogo.” Dagoberto explica que, quando feitas para ferir determinados grupos da sociedade, a piada vira violência.
“Não há ingenuidade em quem a profere. No caso da nossa sociedade, formada pelo escravismo e atravessada por violências como o machismo e o racismo, a piada muitas vezes funciona como um disfarce, um abrandamento da violência. Ao fazer rir, parece que não há agressão, mas a violência existe, e esse delito precisa ser reconhecido. Todo racista é um serial killer, porque o racismo mata. O serial killer não está preocupado com a história da sua vítima, ele apenas quer tirar a vida do corpo, assim como uma pessoa que faz uma piada nesse nível para muitos seguidores que sequer sabe quem são”, pondera.
Alguns artistas também se posicionaram publicamente a favor da condenação de Leo Lins. A atriz Luana Piovani avaliou que a punição pode ajudar a combater a violência contra grupos minoritários. “Não acho pouco oito anos para uma pessoa que faz piada com minorias marginalizadas”, escreveu. “Só vi macho defendendo. Inclusive, homens que iro. Provavelmente porque ainda não aram por isso de perto. Se tivessem uma filha espancada ou uma irmã estuprada, talvez não achassem a pena exagerada”, destacou.
Já na avaliação de Pedro Cardoso, o “teatro a que chamam ‘stand-up’ se tornou um ninho no Brasil, onde se desenvolveu o ovo da serpente do fascismo.’” “Devemos criminalizar a piada racista, ou a misoginia, quando o ato já não for ficcional, ainda que disfarçado de o ser", afirmou o intérprete de Agostinho Carrara, de “A Grande Família.”
O outro lado
O humorista Leo Lins se defendeu da acusação, dizendo que seu show retrata um personagem, não as opiniões dele. “É uma persona cômica que criei ao longo de dez anos”, afirmou em live publicada após a condenação. No vídeo, Lins citou o filósofo britânico Simon Critchley, autor de teorias sobre o humor, para dizer que sua interpretação em um show de stand-up equivale ao trabalho de um ator em uma cena de dramaturgia.
“Um humorista no palco interpreta um personagem. Então, se eu assistir a um filme de romance, posso processar os atores por atentado ao pudor?”, questionou. “Concordar com essa sentença é um atestado de que somos adultos infantilóides sem capacidade de discernir o que é bom ou ruim e que precisamos de um Estado falando do que podemos rir, do que podemos falar e até mesmo do que podemos pensar”, concluiu.
Parte da classe artística saiu em defesa de Leo Lins, como os humoristas Antonio Tabet, Danilo Gentili e Mauricio Meirelles. No X, Meirelles comparou a condenação com a prisão dos cantores Oruam e Poze do Rodo. “Ninguém deve ser preso pela sua arte”, escreveu. Mais tarde, brincou: “Quer saber? Vou parar de fazer piada e entrar pro comando vermelho.”
Tabet também usou o X para se manifestar. “Pode-se não achar a menor graça ou até detestar as piadas de Leo Lins, mas condená-lo à prisão por elas é uma insanidade e um desserviço. Espero que essa decisão completamente descabida seja revertida”, escreveu. Danilo Gentili publicou um vídeo dizendo que “piadas não geram intolerância e preconceito.” “O humor não comete crimes. É uma forma de arte que serve para causar alívio, riso e boas sensações em quem está ouvindo”, relatou.
Inicialmente, o apresentador da Globo Marcos Mion havia publicado um texto no qual discordava do tipo de humor praticado por Lins, mas ponderou que censurá-lo não seria a melhor solução. Após a repercussão negativa de sua fala, no entanto, Mion apagou a postagem. No novo texto, o ator tentou esclarecer seu posicionamento.
“Escrevi que discordo e não respeito o que ele faz. Em nenhum momento falei que esses absurdos são a genialidade dele. Isso que defendi: que censura nunca é boa. Mas eu não conheço todos os textos dele. Se configuram crime, como escrevi, foi a escolha dele.” Leo Lins, por sua vez, alfinetou o apresentador, dizendo que prefere falar m*rda “do que ser um boneco de ventríloquo” com uma empresa “mexendo minha boca para eu falar o que ela quer.”
O que diz a lei
Leo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão pelos crimes do artigo 20 da Lei do Racismo (“praticar e incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”) e do artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (“discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”).
Além da prisão, em regime inicialmente fechado, ele também deve pagar uma multa equivalente a 1.170 salários mínimos (no valor da época em que o show ocorreu) e indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos. Cabe recurso à sentença.
Na decisão, a Justiça entendeu que “no caso de confronto entre o preceito fundamental de liberdade de expressão e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica, devem prevalecer os últimos.” O processo corre na 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo.
O advogado do humorista, Carlos Eduardo Ramos, diz que não esperava a sentença, porque, no seu entendimento, o processo apontava para uma absolvição. “Ficou demonstrado que não houve intenção de ofender ninguém. A acusação afirma que esse show – realizado no palco, com enredo, cenário e figurino – não seria uma obra de ficção, mas algo real, que representasse a opinião do artista. As testemunhas e o próprio Leo Lins negaram isso”, afirma.
Outros profissionais do direito consultados pela reportagem se dividem entre concordar e discordar dessa visão. Fábio de Sá Cesnik, do escritório CQS/F, afirma que “a liberdade de expressão não é absoluta, e ferir a dignidade de alguém é igualmente importante.”
Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pedro Estevam Serrano exemplifica o caso. “Quando uso da minha liberdade de expressão de pensamento para reprimir a liberdade de expressão afetiva do outro, estou praticando uma violência”, diz.
Já o advogado Rafael Paiva, do escritório Paiva & André, avalia que a condenação é indevida. “Temos um problema grande no Brasil de coerência judicial. Hoje um traficante primário não pega uma pena superior a quatro anos de prisão. É um show de mau gosto, mas categorizar isso como crime é muito perigoso. Não me parece que o intuito ali seja discriminar ninguém, mas tirar sarro. Acho que a melhor solução para isso é as pessoas não irem a esses shows”, comenta.
Sua visão encontra amparo na de Marco Antonio Sabino, do escritório Mannrich e Vasconcelos. “Racismo e preconceito são dois crimes dos mais repugnantes. Ainda assim, achei perigosa a sentença como censura. Ele estava no show dele, em que as pessoas sabem qual é o tipo de humor”, pontua.
(Com Diogo Bachega/Folhapress)